Com a mudança na economia, exportar produtos básicos para os chineses não dá os mesmos lucros de antes. O Brasil terá de rever sua estratégia comercial.
Durante quase dez anos, a China representou uma espécie de Eldorado para o Brasil. Com o crescimento acelerado da economia chinesa, que praticamente dobrou de tamanho no período, as exportações brasileiras para a China explodiram. Puxados pela demanda chinesa, os preços de
commodities, como a soja e o minério de ferro, os dois produtos mais vendidos pelo Brasil à China, bateram recordes históricos. Mesmo depois da crise no mercado imobiliário americano em 2008, da qual a economia global ainda não se recuperou plenamente, os dólares da China continuaram a inundar o Brasil. A dinheirama de Pequim alavancou o crescimento econômico do país e contribuiu para aumentar a renda nacional. Graças a ela, a moeda americana manteve-se por um bom tempo abaixo de R$ 2. A importação de bens de consumo – boa parte dos quais produzida pela própria China – transformou-se numa pechincha, e os “sacoleiros” do país puderam trocar Cidade do Leste, no Paraguai, por Miami, nos Estados Unidos, para fazer suas compras. Tudo isso alimentou a fantasia de empresários e de muitos políticos e burocratas de Brasília de que o Brasil havia, enfim, carimbado o passaporte para entrar no exclusivíssimo clube dos países desenvolvidos.
A farra patrocinada pela China, porém, chegou ao fim. Com a desaceleração da economia chinesa e a queda da demanda, associada a um excesso de
oferta de países produtores como o Brasil, o “boom” das commodities murchou. Os preços no mercado internacional despencaram, reduzindo o ingresso de divisas da China no país. Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, o volume de vendas para a China caiu 21% nos primeiros sete meses deste ano em relação ao mesmo período de 2014, de US$ 28 bilhões para US$ 22,6 bilhões. Foi uma queda bem maior que a retração geral das exportações brasileiras, de 15,5%.
“Foi um longo e doce verão provocado pelas importações chinesas, mas ele acabou”, afirma o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e ex-ministro das Comunicações. “Hoje, o crescimento chinês é de outra natureza. Na nova matriz, o Brasil não tem a mesma importância que teve no passado. Então, temos de nos adaptar a uma situação diferente.”
Acompanhando a queda dos preços do minério de ferro, de 25% desde o final de 2014, as receitas das exportações da commodity para a China caíram pela metade. Isso é efeito da redução das obras de infraestrutura feitas pelo governo chinês. Não por acaso, as ações da Vale, a maior produtora de minério de ferro do mundo e grande fornecedora da China, acumulavam uma queda de 25,9% em 2015, até sexta-feira passada, na BM&FBovespa. Com a soja, a situação é semelhante, mas em menores proporções. Apesar de os preços terem caído apenas 2% nos primeiros sete meses de 2015, o faturamento com as exportações para a China teve uma queda de 14%. O pior é que, diante das incertezas que cercam o desempenho econômico chinês e da mudança progressiva do modelo adotado pelo país, de uma economia baseada em exportações de manufaturados para uma economia de serviços, voltada para o mercado interno, não há perspectivas de melhora no horizonte. “As commodities não vão voltar aos preços a que chegaram, porque a demanda caiu muito”, diz Mendonça de Barros.
O tranco provocado pela guinada da China nas exportações brasileiras revela, porém, apenas o lado mais visível do problema. Seu impacto no Brasil será bem mais amplo e deverá afetar a vida das empresas e dos consumidores. Até a exploração do pré-sal, com o petróleo cotado na faixa de US$ 40 por barril, por conta do aumento da oferta e da queda da demanda, deve ficar economicamente inviável. Embora a atual crise econômica do país se deva, basicamente, aos erros cometidos na economia desde o final da gestão de Lula, acentuados no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, e não a fatores externos, como o governo insiste em dizer, as mudanças na China deverão dificultar a retomada do crescimento. Desta vez, com o país mergulhado na maior recessão em 25 anos, é pouco provável que Lula diga que as turbulências na China provocarão apenas uma “marolinha” no país, como ele fez logo após o tsunami global de 2008. “A China é mais um agravante para a nossa situação”, afirma Bernardo Parnes, presidente do Deutsche Bank na América Latina e comandante do banco no Brasil. “O Brasil é um grande exportador de commodities e a queda dos preços internacionais gera um forte impacto na economia.”
Desde já, a redução no ingresso de divisas no país deu um forte impulso à valorização do dólar ante o real. Na semana passada, a cotação chegou a R$ 3,60 para a venda no câmbio comercial – uma alta de 60% em 12 meses – e a R$ 4 no câmbio turismo. Em boa medida, a escalada do dólar se deve à crise política e à alta da inflação. Mas o fim do boom das commodities e a redução das exportações para a China também têm uma influência considerável. O dólar caro tem um tremendo impacto nas importações, que caíram 20,9% no ano, e encarece as viagens internacionais, que caíram em julho, mês de férias escolares, 30,4% em comparação ao mesmo período do ano passado, de acordo com o Banco Central. Como efeito compensatório, o real desvalorizado, tão reclamado pela indústria, aumenta a competitividade do Brasil na arena global e favorece a exportação de manufaturados – o que pode atenuar a perda de dólares com a venda de commodities. De forma imprevista, a virada da China pode acabar beneficiando a indústria nacional, que tem perdido força nos últimos anos. “Quem exporta manufaturado está feliz da vida”, diz o economista Roberto Dumas, professor do Insper, escola de administração e negócios de São Paulo, e autor do livro Economia chinesa (Ed. Saint Paul).
A Marcopolo, fabricante de carrocerias para ônibus com sede em Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, e fábricas em diversos países, inclusive na China, está comemorando a alta do dólar, apesar do impacto negativo no custo dos componentes eletrônicos. Com o salto do dólar no Brasil, a valorização do yuan e o aumento do custo de mão de obra na China nos últimos anos, a fábrica brasileira ganhou competitividade e já consegue exportar seus veículos por um custo apenas 5% maior que o da fábrica chinesa, segundo a empresa. Mesmo com a desvalorização, no início de agosto, do yuan em 2%, a maior desde que a China acabou em 2005 com o regime de câmbio fixo, a situação não mudou. Se a tendência de alta do dólar se mantiver no Brasil, a Marcopolo espera poder produzir aqui ônibus até mais baratos que na China. “A China era para ser uma base de produção barata, mas os custos aumentaram muito. Apesar da melhoria observada nos últimos anos, ainda há muita instabilidade na qualidade dos produtos”, afirma Rubem Bisi, diretor da área internacional da Marcopolo.
O novo modelo econômico chinês, mais centrado nos serviços, também poderá gerar novas oportunidades para as empresas brasileiras. A Embraer deverá se beneficiar com o aumento das viagens internas na China. A venda de jatos comerciais produzidos em São José dos Campos, São Paulo, para suprir a demanda local poderá mais que compensar a retração das vendas da fábrica de jatos executivos da Embraer localizada em Harbin, no nordeste da China. A queda foi provocada pelo enquadramento desses aviões como bens de luxo, sujeitos a uma tributação mais elevada. No momento, segundo dados da Embraer, a empresa tem 41 pedidos firmes de vendas para companhias de aviação chinesas, avaliados na faixa de US$ 2,3 bilhões.
Mesmo em meio a uma transição delicada, que se assemelha à manobra de um transatlântico, a China, com reservas cambiais na faixa de US$ 4,2 trilhões, deverá seguir comprometida com seus planos de investimentos no exterior, em especial em países emergentes como o Brasil. Aqui, segundo o economista Roberto Dumas, há vários investimentos com capital chinês em andamento ou já concluídos. Entre eles, estão o linhão de transmissão da usina de Belo Monte, no Pará, de US$ 3,5 bilhões; um empréstimo de US$ 3 bilhões para a Petrobras; e a compra de quatro navios cargueiros da Vale pela China Ocean Shipping Company (Cosco) por US$ 450 milhões. Os chineses também estão de olho nas concessões do governo federal na área de infraestrutura. Para Dumas, a entrada de empreiteiras chinesas no mercado brasileiro, no entanto, não ocorrerá de uma hora para outra. Ele diz que os chineses costumam levar seus próprios funcionários para as obras – e esse é um modelo que não deverá vingar no Brasil. Qualquer investimento mais pesado em concessões no país deverá ser precedido de um estágio de aprendizagem no país de cinco ou seis anos. “Eles não estão estendendo a mão ao Brasil porque são amigos”, afirma Dumas. “O interesse deles em internacionalizar empresas é geopolítico, para conquistar mercados e garantir o escoamento de produção para a China.”
Quem imaginar que o ajuste da China fará o gigante asiático deixar seu papel de protagonista na economia mundial provavelmente errará a aposta. Ainda que seja uma contradição tentar fomentar uma economia de mercado, mantendo o dirigismo do Partido Comunista, uma burocracia estatal com uma respeitável qualificação técnica e invejável eficiência é um trunfo considerável que os chineses mantêm. “Com 1,3 bilhão de habitantes e um mercado consumidor gigantesco, a desaceleração da economia chinesa tem um limite. O poder aquisitivo está subindo, a competitividade deverá ser mantida com o avanço tecnológico dos manufaturados e as obras de infraestrutura continuarão a ser relevantes”, diz o embaixador Sergio Amaral, presidente emérito do Conselho Empresarial Brasil-China. “É impressionante que tantos anos de socialismo não tenham matado o gene do negociante, de comprar e vender mercadorias, presente na civilização chinesa desde seus primórdios.” Ao Brasil, cabe agora adotar a melhor estratégia para extrair dividendos de sua relação com a China. O eldorado chinês das commodities ficou para trás, mas novas oportunidades se oferecem à frente.
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